Ruby Gonsen
A Petrobrás é reconhecidamente uma empresa que se encontra na fronteira tecnológica internacional, no que diz respeito à exploração e produção de petróleo e gás natural em águas profundas. E o que talvez seja mais importante, ela é considerada como sendo a empresa líder nesse campo. Este fato é atualmente matéria de consenso em todos os foruns internacionais que trabalham sobre o tema. Os maiores recordes de produção em águas profundas são detidos por essa empresa e não existe perspectiva de que esse processo seja revertido no curto prazo.
O fato que uma empresa de um país em desenvolvimento assuma a liderança, por um período bastante longo superior a dez anos, em um campo de vanguarda do avanço tecnológico, é, sem duvida, um fenômeno singular em toda a história do petróleo. Essa observação se torna ainda mais contundente se levarmos em consideração que a trajetória tecnológica dessa empresa se apoia em inovações incrementais.
De fato, como tratamos de demostrar ao longo desse artigo, quando a Petrobrás enfrentou o desafio de produzir em águas cada vez mais profundas, ao invés de apostar em inovações radicais, ou seja, no desenvolvimento e na adoção de sistemas verdadeiramente novos, ela, ao contrário, optou por uma estratégia tecnológica de natureza incrementalista, a qual consistia no melhoramento e aperfeiçoamento do sistema de produção que ela dominava: o SPF.
Essa estratégia conformou uma trajetória tecnológica que se enquadra nos moldes que foram descritos por certos autores sobre a mudança técnica em países em desenvolvimento (Katz, 1976 e 1987; Bell, 1984; Lall, 1982; Fransman, 1986). De certa forma a empresa brasileira adotou essa trajetória tecnológica por falta de escolha. Os escassos recursos financeiros e tecnológicos, associados ao imperativo de aumentar a produção interna de petróleo, não ofereciam outra opção a não ser a de buscar aperfeiçoar o sistema que já operava.
Causa certa perplexidade que a Petrobrás tenha alcançado a liderança tecnológica, através uma trajetória tecnológica apoiada em inovações incrementais, em um campo de tão grande importância como o offshore profundo, no qual competem as grandes empresas de países líderes. Na realidade, essa indagação não tem uma resposta simples. Combinaram-se, por um lado, importantes oportunidades e, por outro, escolhas tecnológicas que resultaram ser adequadas.
As oportunidades surgiram principalmente no campo da geologia. As descobertas que foram feitas pela Petrobrás resultaram ser, na segunda metade da década de 80, as maiores realizadas até então nessas profundidades. Elas de certa forma justificaram que a empresa se empenhasse pioneiramente em desenvolver os sistemas de produção. Para se ter uma ordem de grandeza, as descobertas feitas nos campos de Marlim e Albacora eram da ordem de vários bilhões de barris, enquanto os campos em água profunda no Golfo do México correspondiam, na época, apenas a centenas de milhões de barris. O campo de Auger apresenta reservas estimadas de 220 milhões de bep.
Essa situação atualmente já está evoluindo consideravelmente a medida em que a produção em águas profundas torna-se cada vez mais factível. Já existem 3 a 4 bilhões de bep descobertos no Golfo do México. Estima-se que esse potencial chegue entre 9 a 15 bilhões de bep (Bourgeois, Abril 1995). Na zona de águas profundas situadas no oeste das Ilhas Shetland, as estimativas variam de 4 a 8 bilhões de bbl (Beckman, agosto 1995).
Entretanto, as oportunidades geológicas não constituem uma razão suficiente para explicar o sucesso da trajetória tecnológica da Petrobrás, mesmo que, no caso brasileiro, houvesse uma necessidade imperiosa de aumentar a produção para atender a demanda interna. Na realidade, as principais razões desse sucesso foram a escolha apropriada do sistema de produção e uma estratégia de desenvolvimento tecnológico coerente, de caráter incrementalista. De fato, ao não apostar em novos sistemas e ao apoiar seus desenvolvimentos em melhoramentos do SPF, a Petrobrás fez, pioneiramente, a opção tecnológica que acabaria vingando em toda indústria.
A razão, que fez com que a trajetória tecnológica dominante na indústria do petróleo convergisse com a da Petrobrás, reside essencialmente na alteração do ambiente de seleção das tecnologias a partir do contra-choque do petróleo. As estratégias de busca para desenvolver a produção em águas profundas, que predominavam nessa indústria até então, apelavam para inovações radicais. As expectativas que foram colocadas nos novos sistemas de produção acabaram não se confirmando frente ao quadro relativamente deprimido dos investimentos que caracterizou a indústria desde o contra-choque. Entretanto, a indústria do petróleo esteve longe de ficar estagnada tecnologicamente. Ao contrário, sob o impulso das novas tecnologias introduziram-se uma série de inovações que permitiram redinamizar a base tecnológica existente. Essa evolução acabou sancionando a opção tecnológica da Petrobrás, a qual foi determinada pela sua posição de empresa de país periférico.
Como a aprendizagem tecnológica é um processo de natureza cumulativa, a vantagem inicial adquirida pela empresa brasileira, foi se consolidando a medida em que novas descobertas geológicas foram sendo feitas e em que novos conceitos foram sendo implantados. Vimos, no início deste artigo, que os sistemas tecnológicos com um avanço inicial sobre os demais podem tornar-se hegemônicos, devido aos rendimentos crescentes de adoção. Entretanto, para que o processo aprendizagem tecnológica da empresa brasileira fosse bem sucedido, ela teve que adotar uma atitude cada vez mais ativa frente à inovação, a qual se traduziu no lançamento de importantes programas tecnológicos.
Deve-se salientar que a postura de organizar e lançar grandes programas tecnológicos com a finalidade de desenvolver tecnologia para águas profundas é quase única no contexto da indústria do petróleo, na qual predomina um certo recuo dos investimentos em P&D das grandes empresas, principalmente durante a década de 90 (Economides, 1995). O Procap é o único programa tecnológico de âmbito internacional para águas profundas junto com o Deepstar. Este é um programa apoiado por um consórcio de companhias petroleiras encabeçado pela Texaco que tem por finalidade desenvolver tecnologia de águas profundas a custo acessível no Golfo do México. A Petrobrás, através do Procap tem assumido uma posição de liderança institucional ao ter promovido pioneiramente projetos industriais associados. Essa formula assume uma importância crescente nos desenvolvimentos futuros da indústria do petróleo (Mercier, 1995).
Entretanto, o avanço tecnológico adquirido pela empresa estatal não foi suficiente para que o Brasil lograsse se tornar um exportador de tecnologia, de equipamentos ou de serviços na indústria offshore. A relativa fraqueza do spill over da atividade inovativa da Petrobrás para os fornecedores nacionais se deve a certas particularidades da trajetória tecnológica setorial. De fato, as operadoras (companhias petroleiras) detém parcialmente o controle da tecnologia que usam, a outra parte estando em mãos de fornecedores. Como os mais importantes fornecedores são empresas multinacionais e a indústria nacional de bens de capital carece cruelmente de capacitação tecnológica em produto, não propiciou-se um ambiente favorável ao desenvolvimento de um polo exportador.
Não resta dúvida que esses fornecedores estrangeiros estão realizando um importante aprendizado operando junto a Petrobrás em águas profundas. Nesse caso, se destaca a empresa francesa Coflexip que recebeu o prêmio Distinguished Achievement Award da Offshore Technology Conference de 1995 pela produção de tubos flexíveis e sobretudo pela colocação desses tubos em grandes profundidades (JTP, abril 1995). Ora, a maioria dos métodos de colocação de tubos a grandes profundidades, como a instalação de risers flexíveis sem mergulhadores e os métodos de colocação vertical de sistemas de conexão em forma de j previamente amarrados à ANM, na realidade, foram desenvolvidos em estreita colaboração com a Petrobrás e foram patenteados por esta empresa. Portanto, em grande parte, o mérito da Coflexip incumbe à empresa brasileira. Esses métodos estão sendo aplicados com sucesso por Coflexip em outras zonas produtoras como as do Mar do Norte.
A empresa brasileira, cada vez mais consciente da fraqueza tecnológica dos fornecedores nacionais e da generalização dos SPF como sistema tecnológico dominante, agora na forma de FPSO, preocupa-se menos em desenvolver os seus componentes, deixando essa incumbência para os fornecedores internacionais, como demonstra a análise que fizemos da carteira de projetos do Procap 2000.
Certamente a experiência bem sucedida da Petrobrás demonstra que estratégias tecnológicas apoiadas em inovações incrementais têm alguma chance de serem bem sucedidas e mesmo de alcançarem a fronteira tecnológica. O fato que a evolução econômica recente tenha sancionado inovações poupadoras de custo, ao invés de inovações mais radicais de produto, certamente influiu nesse quadro. Entretanto, não pode se deixar de reconhecer que a indústria do petróleo apresenta melhores chances de sucesso para as empresas de países em desenvolvimento, ao se comportar como uma indústria tecnologicamente madura. Com um coeficiente de gasto em P&D sobre o faturamento de 0,8% nos Estados-Unidos em 1993, ela se coloca muito abaixo de outras indústrias como a de saúde (10,6%), automobilística (4%), eletro-eletrônica (5,5%), química (4%), informática (8%), aéro-espacial (4,2%) (BusinessWeek, 27/6/94). Nesse contexto, os gastos de P&D no campo da exploração e produção realizados pela Petrobrás ocupam uma respeitável posição dentro do cenário internacional. Com um gasto de US$ 45 milhões a empresa brasileira está em sexto lugar no ranking internacional, perdendo apenas, em ordem de importância, para Schlumberger (270), Arco (118), Halliburton (100), Elf (100) e o Instituto Francês do Petróleo (92) das instituições que responderam ao PetroResearch do Journal of Petroleum Technology (JPT, abril e maio 1994). Certamente estão ausentes importantes empresas como a Royal Dutsch Shell, Exxon, Mobil e Texaco que realizam gastos provavelmente superiores aos da empresa brasileira. Entretanto, o volume do dispêndio realizado por essa empresa, que é sem dúvida o maior entre os países em desenvolvimento, associado a um tamanho relativo que a coloca entre as grandes, mostra como puderam se criar condições para que ela alcançasse a fronteira tecnológica em determinadas atividades.
Comparativamente aos demais setores industriais, os setores maduros, onde existem importantes empresas nos países em desenvolvimento, oferecem maiores oportunidades a processos de catching up e até mesmo de leapfrogging. Mesmo assim, esses fatores estruturais não podem de forma alguma apagar a importância das trajetórias tecnológicas das empresas nesses processos.
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