ISSN 0798 1015

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Vol. 38 (Nº 20) Año 2017. Pág. 34

«O rastro do teu sangue na neve» pela perspectiva da identidade, espaço e memória

«The trail of your blood in the snow» from the perspective of identity, space and memory

Ana Hélia de Lima SARDINHA 1; Cristiano de Lima Vaz SARDINHA 2; Muranna Silva LOPES 3; Renata Caroline Pereira Reis MENDES 4; Mônica Teresa Costa SOUSA 5

Recibido: 09/01/2017 • Aprobado: 23/01/2017


Conteúdo

1. Introdução

2. As identidades de Nena Daconte e Billy Sanches de Ávila

3. O carro conversível e o hotel, como espaciosidade e apinhamento

4. A memória como forma de contrução da identidade dos personagens

5. Considerações finais

Referências


RESUMO:

Analisa o conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, presente na obra “Doce Cuentos Peregrinos” de autoria de Gabriel García Marquez, por meio das perspectivas conceituais e principais características do espaço, identidade e memória. Apresenta uma síntese dos acontecimentos mais marcantes ocorridos no referido texto literário. Aborda a formação da identidade dos personagens principais. Verifica situações de apinhamento e espaciosidade vivenciadas pelos personagens. E, por fim, destaca a memória e o passado que foram construídos pelo autor para os personagens, como componentes necessários para a sua melhor compreensão.
Palavras-chave: Construção. Identidade, Espaço e Memória. Personagens

ABSTRACT:

This article analyzes the story "The Trail of Your Blood in the Snow", present in the book "Doce Cuentos Peregrinos" by Gabriel García Marquez, through conceptual perspectives and main characteristics of space, identity and memory. It presents a synthesis of the most striking events occurred in said literary text. It addresses the formation of the identity of the main characters. It verifies situations of crowding and spaciousness experienced by the characters. And finally highlights the memory and the past that were built by the author for the characters, as necessary components for their better understanding.
Keywords: Construction. Identity, Space and Memory. Characters.

1. Introdução

O presente artigo tem como principal objetivo analisar pelos prismas do espaço, identidade e memória o conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, presente na obra “Doce Cuentos Peregrinos”, de autoria de Gabriel García Marquez.

No aludido conto, é exposto o nascimento da paixão e romance de dois jovens, que, embora possuíssem características tão díspares, por serem pertencentes a formas de vida e de mundo absolutamente distintas, acabaram construindo fortes laços físicos e psicológicos que os uniram em matrimônio.

Dessa maneira, o ardente amor de Nena Daconte e de Billy Sanches de Ávila nos é contado por meio da viagem de lua de mel desse casal, que terminou de forma extremamente trágica, porém poética, como também através de acontecimentos passados que aconteceram na vida de ambos e que são capazes de revelar e explicar muito acerca das suas identidades e dos seus comportamentos.

Em face do exposto, almeja-se verificar um pouco da vasta complexidade das identidades de Nena Daconte e de Billy Sanches de Ávila, ricamente descritas e compartilhadas com o leitor, dentro de espaços e lugares que certamente influenciaram, consciente e inconscientemente, esses personagens.

Ademais, os lapsos de memória da estória de vida em comum do casal ou isoladamente de cada personagem são importantíssimos para a composição do enredo do conto, que perpassa por variadas questões de natureza psicológica, social e cultural que, de uma maneira ou de outra, estão relacionadas com a conjuntura da vida cotidiana das pessoas.

Vale ressaltar que o conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, por várias vezes, trata das diferenças culturais que existem entre as pessoas e as nações, fazendo questão de retratar o choque cultural e comportamental comumente ocorrente quando as pessoas se deslocam dos seus locais de origem para novos lugares. Seguindo essa linha, os outros contos da obra “Doce Cuentos Peregrinos” também abordam em algum momento a mesma questão.

Tecidas essas considerações iniciais, salienta-se que, no presente estudo, far-se-á uso metodológico de pesquisa bibliográfica, sendo analisado o conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, por meio da seleção de passagens desse texto literário que tangenciem conceitos e perspectivas atreladas de alguma forma às noções de identidade, espaço e memória.

Por certo que Nena Daconte e Billy Sanches de Ávila serão os personagens principais do estudo ora proposto, afinal, além de eles serem os atores centrais do conto selecionado para análise, também são possuidores de profundidade oceânica quanto às suas peculiaridades, o que permite ao leitor criar íntimos vínculos em relação a tais personagens e as suas estórias.    

2. As identidades de Nena Daconte e Billy Sanches de Ávila.

Ainda nos primeiros passos da estória apresentada ao leitor, Gabriel García Marquez destaca algumas das características físicas e psicológicas do casal foco da narrativa, também contando acerca da forma como se vestiam, para assim nos ser repassado o contexto social presente em que estavam inseridos e compreendermos um pouco de suas origens.

Dessa maneira, Nena Daconte é apresentada como quase uma menina, com olhos de pássaro feliz e pele de melaço, agasalhada com uma estola de visom cara, de acordo com o seu alto poder aquisitivo. Por outro lado, Billy Sanchez é delineado como sendo o marido de Nena Daconte, que dirigia o automóvel, sendo um ano mais jovem do que ela e quase tão belo, estando trajado com um paletó escocês e um boné de beisebol, sendo alto e atlético, com mandíbulas de ferro dos valentões tímidos. (MARQUEZ, 1992)

 A primeira descrição do casal, expõe um elemento essencial que se faz presente em grande parte da narrativa, relacionado ao fato de que Nena Daconte é o referencial de Billy Sanchez, que age e comporta-se em prol de sua amada, não no sentido de ser inteiramente submisso e subserviente às vontades da moça, mas de tê-la como prisma para a percepção de sua própria existência.

Também deve ser detentora de atenção, a parte em que se forma o imprevisível amor entre o casal, conforme narrado:

Ninguém, a não ser eles mesmos, entendia o fundamento real nem conheceu a origem daquele amor imprevisível. Havia começado três meses antes do casamento, num domingo de mar em que a quadrilha de Billy Sánchez tomou de assalto os vestiários de mulheres no balneário de Marbella. Nena Daconte havia acabado de fazer dezoito anos, acabava de regressar do internato de la Châtellenie, em Saint-Blaise, Suíça, falando quatro idiomas sem sotaque e com um domínio magistral do sax-tenor, e aquele era seu primeiro domingo de mar desde o regresso. Havia se despido por completo para vestir o maiô quando começou a debandada de pânico e os gritos de abordagem nas cabines vizinhas, mas não entendeu o que estava acontecendo até que a tranca de sua porta saltou aos pedaços e viu parado na sua frente o bandoleiro mais belo que alguém poderia imaginar. A única coisa que vestia era uma cueca exígua de falsa pele de leopardo, e tinha o corpo agradável e elástico e a cor dourada das pessoas do mar. No pulso direito, onde tinha uma pulseira metálica de gladiador romano, trazia enrolada uma corrente de ferro que lhe servia de arma mortal, e tinha pendurada no pescoço uma medalha sem santo que palpitava em silêncio com o susto do coração. (Marquez, 1992, p.226 e 227).

O texto transcrito emoldura a maneira como nasceu a relação dos personagens e trata sobre as peculiaridades de cada um deles, enfatizando a clássica formação educacional e cultural de Nena Daconte e o espírito selvagem e agressivo de Billy Sánchez.

Ocorre que, no decorrer do desenvolvimento do conto, é possível perceber que as identidades de Nena Daconte e Billy Sanchez não são estáticas, nem tão simples e previsíveis, a ponto de poderem sere visualizadas e comparadas de forma absolutamente cartesiana, pois claramente nota-se que os personagens se influenciam reciprocamente, como também são afetados pelo meio em que estão inseridos.

Sobre a complexidade da formação da identidade, Stuart Hall explica a não existência de uma identidade fixa do indivíduo dentro da sociedade, haja vista que ela possui conteúdo fragmentado, sendo composta por várias identidades, que por vezes podem ser contraditórias ou não resolvidas.

Especificamente quanto ao sujeito pós-moderno, Stuart Hall informa que tal sujeito é representado pela fragmentação identitária, haja vista não possuir uma identidade fixa, essencial ou permanente, pois na realidade, a mesma é formada e transformada em um processo contínuo.

Para melhor compreender a constante formação e transformação da identidade, é imperioso que literalmente se exponha o pensamento de Hall (2015, p. 12):

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.

O mesmo autor prossegue:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente. (HALL, 2015, p. 12).

Depreende-se da ideia acima transcrita que é errônea a percepção da identidade como algo plenamente unificado e coerente, pois, com a multiplicação das significações e representações culturais, há, consequentemente, o exponencial aumento de identidades possíveis.

Por tudo isso, quando se esmiúça as personalidades e identidades do casal da trama, nota-se que, apesar do arquétipo geral que pode lhes ser imputado pelo leitor, Nena Daconte e Billy Sanchez não são limitados às respectivas características de culta e selvagem apenas.

Exemplifica-se a quebra da estereotipização dos personagens na passagem em que a mãe de Nena Daconte tentou em vão que essa tocasse de outra maneira o saxofone, e não como ela fazia por comodidade, com a saia puxada até as coxas e os joelhos separados, de forma sensual que não seria essencial para a música. Contudo, conforme o criador dos personagens, foram esses ares de adeuses de barcos e essa obstinação de amor que permitiram a Nena Daconte atravessar a casca de Billy Sánchez, de forma a conquistá-lo. (MÁRQUEZ, 1992)

Quanto a Billy Sanchez, por trás da sua máscara de sujeito machista e embrutecido pelo mundo, havia um órfão assustado e manso, que se revelava para Nena Daconte quando viviam as intimidades em leito de amor. (MÁRQUEZ, 1992)

Conforme já verificado, após o início da relação do casal, Nena Daconte tornou-se uma referência consciente ou subconsciente para Billy Sánchez, ou seja, ainda que de forma não completamente racional, Billy Sánchez seguia o rastro deixado por Nena Daconte, sendo essa uma das justificativas para o título “O Rastro do Teu Sangue na Neve”

Sobre o impacto do plano inconsciente sobre a formação do sujeito e sua identidade, surgiram avanços na teoria social e nas ciências humanas, no período denominado de modernidade tardia (a segunda metade do século XX), que impactaram diretamente o sujeito cartesiano, supostamente regido, única e exclusivamente, pelo império da razão.

No século XX, destaca-se a releitura e reinterpretação dos trabalhos de Marx, produzidos no século XIX, no sentido de que os indivíduos não poderiam, de nenhuma maneira, ser os autores ou agentes da história, em vista do agir desses indivíduos estar diretamente subordinado às condições históricas que são criadas por outros e que os submetem desde o nascimento, pois somente podem utilizar os recursos materiais e culturais fornecidos pelas gerações anteriores. (HALL, 2015)

Nesse diapasão, Freud tratou em suas teorias sobre o inconsciente, sobre as nossas identidades, sexualidade e as estruturas de nossos desejos que obedecem uma “lógica” bem diferente da razão, impactando contra o conceito de sujeito cognoscente e racional imbuído de uma identidade fixa e unificada. (HALL, 2015)

Diante disso, Hall explica que:

Assim a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As partes “femininas” do eu” masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento.(HALL, 2015, p. 24).

Nesse compasso, vale destacar que Billy Sánchez deixou de seguir o rastro de Nena Daconte, somente após a morte dela, quando perdeu a referência estabelecida por conta da relação amorosa existente e andou pela neve, que poeticamente não possuía mais o rastro de sangue da sua amada.

3. O carro conversível e o hotel, como espaciosidade e apinhamento.

Conceitualmente os termos “espaço” e “lugar” não são idênticos, pois, o primeiro é simbolicamente associado à liberdade, sugerindo futuro e convidando ao agir, enquanto o segundo é associado a um centro calmo, de valores estabelecidos. (TUAN, 1930)

Face o exposto, não pairam dúvidas que, na distinção entre espaço e lugar, haja um significativo componente de ordem subjetiva, umbilicalmente entrelaçado ao espírito íntimo de quem analisa a situação, haja vista que um mesmo ambiente físico pode ser considerado espaço para um indivíduo e lugar para outro.

Ademais, é curial notar-se que os seres humanos vivenciam um constante devir em vários sentidos. Um exemplo disso é a constante dialética entre espaço e lugar a que as pessoas estão cotidianamente sujeitas, pois perpassam por situações de segurança e liberdade em alternância frequente.

Sobre o tema, Tuan descreveu espaço e lugar com bastante clareza e substancialidade:

O espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. O espaço permanece aberto; sugere futuro e convida à ação. Do lado negativo, espaço e liberdade são uma ameaça. Um dos sentidos etimológicos do termo bad (mau) é “aberto”. Ser aberto e livre é estar exposto e vulnerável. O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões estabelecidos que revelem algo, é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer significado. O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e de lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade. No espaço aberto, uma pessoa pode chegar a ter um sentido profundo de lugar, e na solidão de um lugar protegido, a vastidão do espaço exterior adquire uma presença obsessiva.  (TUAN, 1930, p. 72).

A noção conceitual de espaciosidade e apinhamento são relevantes para o escopo pretendido, de forma que espaciosidade é relacionada com a sensação de estar livre, de locomover-se e de poder atuar da forma mais conveniente. Por um aspecto diametralmente oposto, a sensação de apinhamento é condizente com a falta de liberdade e de poder de escolha, gerando “sufoco” para quem a experimenta. (TUAN, 1930)

Quando se transporta essa noção conceitual para o plano do conto objeto de estudo, o Bentley conversível é para Billy Sánchez um proporcionador de espaciosidade, pois era nesse automóvel que o personagem se sentia mais livre, não apenas pelo aspecto físico, mas também em seu íntimo, no âmago do seu ser, transbordava a sensação de liberdade, prazer e poder, quando pilotava o conversível.

Tinha uma paixão insaciável pelos automóveis raros e um papai com demasiados sentimentos de culpa e recursos de sobra para agradá-lo, e nunca havia dirigido nada igual àquele Bentley conversível de presente de casamento. Era tanta a sua embriaguez ao volante que quanto mais andava menos cansado se sentia (MARQUEZ, 1992, p. 225).

Em contrapartida, quando Billy Sánchez estava hospedado no “Hotel Nicole”, era preponderante a sensação de apinhamento e desconforto, principalmente em decorrência das “mesquinharias” relacionadas ao controle excessivo de água, luz e espaço que eram realizados.

Billy Sánchez tinha muita dificuldade em compreender a racionalidade existente no controle dos mencionados elementos, pois, em razão de suas origem, cultura e forma quase selvagem de enxergar a vida, inexoravelmente lhe brotava o mal-estar por não ter a plena liberdade de poder agir como exatamente quisesse.

4. A memória como forma de contrução da identidade dos personagens

Um importante elemento presente na formação dos personagens do conto em apreço refere-se às memórias que lhe são imputadas, haja vista que tanto Nena Daconte quanto Billy Sánchez foram dotados de lembranças ligadas aos seus passados, que permitem ao leitor uma compreensão mais aprofundada acerca dos desejos e comportamentos dos personagens.

Logo no encontro dos personagens, nos é delineada a seguinte memória:

Haviam estado juntos na escola primária e quebrado muitas jarras no jogo de cabra-cega das festas de aniversário, pois ambos pertenciam à estirpe provinciana que manejava ao seu arbítrio o destino da cidade desde os tempos da colônia, mas haviam deixado de se ver tantos anos que não se reconheceram à primeira vista. (MARQUEZ, 1992, p. 227).

Dessa feita, ainda que possuíssem uma história em comum no início de suas vidas, os personagens acabaram se afastando por tanto tempo, que não alimentaram essa memória e terminaram não se reconhecendo posteriormente.

De toda sorte, a referida estória da infância dos personagens induz o leitor a perceber que inicialmente havia muita similaridade entre Nena Daconte e Billy Sánchez, porém os percursos vindouros de suas trajetórias os modelaram de maneira que se tornaram pessoas distintas em muitos aspectos.

Outra passagem do conto, relacionada à questão de memória, está presente no momento em que Billy Sánchez, sentindo o peso da solidão do seu quarto de hotel, começa a rememorar seu local de nascimento e as sensações da infância.

Naquela madrugada, pela primeira vez, não pensou em Nena Daconte, mas se revirava na cama sem poder dormir, pensando em suas próprias noites de pesadelos nas cantinas de maricas do mercado público de Cartagena do Caribe. Lembrava-se do sabor do peixe frito e do arroz de coco nas pensões do embarcadouro onde atracavam as escunas de Aruba. Lembrou-se de sua casa com as paredes cobertas de trinitárias, onde agora seriam sete da noite de ontem, e viu seu pai com um pijama de seda lendo o jornal do fresco da varanda. (MARQUEZ, 1992, p. 243).

Nessa mesma memória de Billy Sánchez, é abordada a complexa e não ortodoxa relação que, como filho único, possuiu com a mãe.

Lembrou-se de sua mãe, de quem nunca se sabia onde estava a nenhuma hora, sua mãe apetitosa e faladeira, com um vestido de domingo e uma rosa na orelha a partir do entardecer, afogando-se de calor por causa do estorvo de suas telas esplêndidas. Uma tarde, quando ele tinha sete anos, havia entrado de repente no quarto dela e a surpreendera nua na cama com um dos seus amantes casuais. Aquele percalço, do qual nunca haviam se falado, estabeleceu entre eles uma relação de cumplicidade que era mais útil que o amor. No entanto, ele não foi consciente disso, nem de tantas outras coisas terríveis de sua solidão de filho único, até aquela noite em que se encontrou dando voltas na cama de uma triste água furtada de Paris, nem ninguém a quem contar seu infortúnio, e com uma raiva feroz contra si mesmo porque não podia suportar a vontade de chorar. (MARQUEZ, 1992, p. 243 e 244).

As memórias dos personagens são apresentadas de forma tão convincente e lógica, que se torna perfeitamente viável para o leitor adentrar nos meandros do consciente e subconsciente dos personagens.

É oportuno ser salientado que os elementos constitutivos da memória, seja ela individual ou coletiva, são oriundos de acontecimentos vividos pessoalmente, bem como por meio dos acontecimentos vivenciados pela coletividade, na qual a pessoa está inserida ou com a qual se relaciona. (HALBWACHS, 2006)

Tais planos da memória são observáveis em Nena Daconte e Billy Sánchez que carregavam consigo lapsos de memória de suas respectivas individualidades e das coletividades familiares e sociais da qual já fizeram parte.      

5. Considerações finais

A primeira conclusão quando se termina a leitura do conto analisado refere-se ao reconhecimento do talento de Gabriel García Marquez em modelar estórias e personagens singulares, que despertam a empatia do leitor e convidam a mergulhar em um universo de reflexões e sentimentos.

Especialmente o conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve” é dotado de passagens alternadas de alegria e drama, na medida que levam a uma profusão de sensações a serem vivenciadas ao lado dos personagens.

Conforme já mencionado, o conto retrata o nascimento da paixão e romance entre dois jovens, que, mesmo com características tão diferentes em decorrência de suas formações, vivenciaram um ardente e profundo relacionamento.

Dentro desse contexto, foi realizada a análise da formação identitária de Nena Daconte e de Billy Sanches de Ávila, identidades essas que não são simples ou cartesianas, ao contrário, são deveras complexas, na tentativa de retratarem a mesma complexidade que há nas pessoas existentes.

Diante disso, abordou-se a identidade em consonância com as teorias de Hall, que trata a identidade não como algo encerrada em si mesma de maneira hermética, mas como algo que está em constante processo de construção, podendo variar ou moldar-se de acordo com a interferência do meio e das outras pessoas.

Nesse desiderato, deu-se especial ênfase às sensações diametralmente antagônicas que foram proporcionadas a Billy Sanches de Ávila, por conta de espaços e lugares, tais como o automóvel e o hotel europeu, que lhe propiciaram, respectivamente, os sentimentos de espaciosidade e apinhamento.

A sensação de espaciosidade foi constatada no personagem quando ele pilotava o seu conversível e sentia-se completamente livre e satisfeito, enquanto o apinhamento restou configurado na sua estadia no hotel europeu, nas situações em que sentia a liberdade de escolha ceifada, muito por causa do choque cultural que vivenciou.  

Foi percebido que as memórias individuais ou coletivas de Nena Daconte e de Billy Sanches de Ávila são importantes componentes para a melhor compreensão das influências conscientes e inconscientes que esses personagens tinham na maneira de pensar e de se comportar.

Como última consideração, merece ser enfatizado que o objetivo proposto foi alcançado, pois as noções de identidade, espaço e memória puderam ser melhor compreendidas por meio da análise desses conceitos na estória de Nena Daconte e de Billy Sanches de Ávila, casal do conto “O Rastro do Teu Sangue na Neve”, de Gabriel García Márquez.

Referências

HALL, Stuart, 1932-2014. A identidade cultural na pós-modernidade. Stuar Hall; tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Maurice Halbwachs; tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais./ Tomaz Tadeu da Silva (org.), Stuart Hall, Katrhryn Woodward – Petrópolis, Rj: Vozes. 2000.

García Márquez, Gabriel. Doze contos peregrinos/Gabriel García Márquez; tradução de Eric Nopomuceno – 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1993.

Tuan, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência/Yi-Fu Tuan; tradução: Lívia de Oliveira. – Londrina: Eduel, 2013.

1. Doutora em Ciências Pedagógicas, Professora Doutora Associada 2 da Universidade Federal do Maranhão-Ma. Email: anahsardinha@ibest.com.br

2. Mestrando do Programa em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: cristiano-sardinha@hotmail.com

3. Mestranda do Programa em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão

4. Mestranda do Programa em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão

5. Prof. Drta.


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Vol. 38 (Nº 20) Año 2017

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