Espacios. Vol. 37 (Nº 34) Año 2016. Pág. 5

Os pressupostos da Teoria Social de Marx: Um caminho possível

Los supuestos de la Teoría Social de Marx: un camino posible

Maria Esperança Fernandes CARNEIRO 1; Maria Cristina das Graças Dutra MESQUITA 2; Lúcia Helena Rincon AFONSO 3

Recibido: 16/06/16 • Aprobado: 30/07/2016


Conteúdo

Palavras introdutórias

1. Uma possível leitura

2. Algumas questões

3. A questão do método

4. Palavras finais

Referências bibliográficas


RESUMO:

Vamos apresentar a Teoria Social de Marx como um caminho metodológico possível para a interpretação da realidade social e uma teoria da sociedade capitalista de produção, ou seja, da ordem burguesa: como ela nasce, se estrutura, se desenvolve e entra em crise. Apresentamos neste artigo didática e esquematicamente a Teoria Social de Marx, que tem como objeto a sociedade burguesa, como ela se institui, sua dinâmica e como nela se constitui o ser social, compreendendo ser um instrumento para discentes em um primeiro contato com este caminho de construção do conhecimento. em que o sujeito apreende o objeto pesquisado em movimento, em suas determinações constitutivas nas relações sociais.
Palavras-chaves: Teoria social, educação, capitalismo.

ABSTRACT:

Presentamos la teoría Social de Marx como una forma metodológica posible para la interpretación de la realidad social, y una teoría de la sociedad capitalista de la producción, el orden burgués, es decir: como nace, si la estructura, se desarrolla y entra en crisis. Presentamos en este artículo didáctico y teoría Social de Marx, que tiene como objeto como se impone la sociedad burguesa, su dinámica y cómo el entendimiento social constituye un instrumento para los alumnos para un primer contacto con esta forma de construcción del conocimiento. Así el sujeto capta el objeto en movimiento en sus determinaciones constitutivas en las relaciones sociales.
Palabras clave: Teoría social, educación, capitalismo.

Palavras introdutórias

Muitas têm sido as dificuldades encontradas por professores e alunos na educação em nível superior, de forma especial a oferecida na rede privada, desde o final da graduação à pós-graduação no processo de elaboração de trabalhos científicos, quer sejam: os de finais de curso, monografias, dissertações e teses. Um dos principais problemas do cotidiano de professores e alunos é o restrito tempo para reflexão e pesquisa. Em relação aos primeiros, ressalta-se a precarização do trabalho docente (a maioria dos professores é horista); os segundos, na maior parte estudantes em tempo parcial, encontram no fator tempo um impedimento para melhor dedicação aos estudos. A condição socioeconômica os obriga a esta situação – trabalhar e estudar – uma vez que têm de trabalhar para poder pagar a educação.

Pensamos que, dada a gravidade desta questão da educação privada, necessitamos apresentar resumidamente a dimensão social da privatização do ensino superior em nosso país. Germano (2000, p. 207) nos auxilia mostrando que, desde o início dos anos 1960, “as instituições públicas participavam ofertando 60% das vagas em nível superior e na década de 1970 elas passaram a ofertar 30% do total das vagas”. Ou seja, em 10 anos houve um decréscimo de sua participação na oferta de vagas em 50%. Os dados do IBGE (2015) demonstram que, em 2014, 76,8% dos alunos que frequentavam o ensino superior estudavam em instituições privadas. Os dados demonstram também que os grupos sociais com os menores índices de renda são os que menos têm acesso ao ensino superior, principalmente ao público .

Esforços têm sido realizados desde os governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2011) e Dilma Rousseff (2011 a 2016) para o aumento das vagas no ensino superior público por meio de políticas de ação afirmativa, como “o Programa Universidade para Todos – PROUNI, o programa Expandir, o sistema UAB - Universidade Aberta do Brasil e o REUNI – Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (DANTAS; SOUSA JÚNIOR, 2009, p.9) e com a criação de 18 novas universidades. Em fins de 2014 os Institutos Federais de Educação somaram 562 novas unidades, uma expansão do ensino superior jamais vivenciada no país.

Segundo o IBGE, em 2004 apenas 1,2% do grupo pertencente às camadas populacionais de menores rendimentos tinha acesso ao ensino superior público e, apesar dos enormes esforços de governantes via políticas públicas e legislações afirmativas, em 2014 esse número subiu para 7,6%, confirmando ainda a imensa desigualdade de acesso. São os filhos dos grupos de maior rendimento os que ocupam 61,7% do total das vagas, ou 79,7%, se somarmos 1º, 2º e 3º quintos de renda (IBGE, 2015).

O setor privado se desenvolve graças à transferência de recursos públicos que se manifesta de diferentes formas (convênios, adesões, renúncia fiscal, subsídio, entre outras) e a democratização do acesso está longe de se concretizar, como mostra o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (2015), haja vista que apenas 14% da população com idade entre 25 e 64 anos conseguiu concluir o ensino superior no país até o ano de 2013.

Diante da concreticidade desta realidade, o ensino superior privado apresenta problemas de várias ordens, mas nos ocuparemos apenas de algumas questões, como a restrição de tempo, tanto do professor como do aluno, para elaboração e realização de pesquisa empírica, bibliográfica, interpretação dos dados, análise e escrita. São questões que estão presentes no cotidiano do trabalho e sempre se constituíram em assunto polêmico, principalmente na atualidade, que compacta o tempo e exige maior produtividade do trabalho, provocando dificuldades que devem ser somadas à limitada formação acadêmica, indispensável para percorrer os caminhos da pesquisa dos métodos e das fundamentações teóricas que nos possibilitam interpretar e analisar um dado objeto de pesquisa.

Essas dificuldades são ainda maiores quando se referem às contribuições teóricas e metodológicas da construção da concepção marxista. Portanto, levamos em consideração algumas questões, das quais trataremos a seguir, partindo da hipótese de que a maioria dos discentes não tem familiaridade com a Teoria Social de Marx e Engels. Por quê? Muitas são as razões, mas lançamos à reflexão apenas algumas. Grande parte dos docentes que hoje atua no ensino superior realizou a graduação após 1964. São filhos da Reforma Universitária (Lei 5540/68), que promoveu a repressão e o banimento desse enfoque teórico metodológico. Há que se considerar também que nas matrizes curriculares dos cursos de graduação substituiu-se a disciplina “Métodos, Metodologias e Teorias” pela disciplina “Metodologia Científica”, que se preocupa com a parte formal de construção do trabalho científico.

Logo após a abertura democrática, em 1985, foi implantado e incorporado nas políticas públicas o modelo neoliberal, cuja referência principal é o mercado, o qual afirma ter soluções para toda ordem de problemas. Mais do que isso, não foram poucos os intelectuais que decidiram esquecer o que escreveram anteriormente tendo por fundamentação o materialismo histórico, tal a importância dada ao neoliberalismo. A queda do socialismo real (1991) e a queda do Muro de Berlim (09/11/1989) também contribuíram para que imperasse o domínio da lógica mecanicista.

Diante dessa realidade, poucos são os intelectuais que se interessam pelos pressupostos da Teoria Social de Marx na atualidade. Não que até o momento não tenhamos intelectuais de renome nesta área do conhecimento, como Dermeval Saviani, Otávio Ianni, Florestan Fernandes, José Claudinei Lombardi, Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Newton Duarte, Moacir Gadotti, Acácia Kuenzer, Celso Ferretti, José Paulo Netto, citando alguns; no entanto, sentimos a necessidade de um texto simples e introdutório que desperte os discentes para uma leitura inicial. O esforço a que nos propusemos para tal é a construção deste texto, que apresentamos a seguir.

Buscamos Karl Marx, que nos ofereceu um caminho metodológico e uma teoria da sociedade capitalista de produção, ou seja, da ordem burguesa: como ela nasce, se estrutura, se desenvolve e entra em crise. Para dar conta de apresentarmos didática e esquematicamente a Teoria Social de Marx, que tem como objeto a sociedade burguesa, sua dinâmica e como nela se constitui o ser social, sabemos dos riscos que estamos correndo. No entanto, este pode ser um instrumento para discentes em um primeiro contato com este caminho de construção do conhecimento, em que o sujeito apreende o objeto pesquisado em movimento, em suas determinações constitutivas nas relações sociais.

1. Uma possível leitura

Nesta leitura da construção dialética da Teoria Social de Marx, buscamos Karl Marx e Engels (1977) e um dos estudiosos desse fundamento, José Paulo Netto (1987). Essa alternativa se justifica pelo rigor e preocupação de Netto em falar desta matriz do conhecimento apresentando raciocínio abrangente e claro, mostrando como a razão moderna foi historicamente constituída em três matrizes culturais, todas filhas da sociedade capitalista, entre elas a Teoria Social de Marx.

Netto (1987) evidencia três profundas alterações sociais: a Revolução Industrial (1750); a Revolução Francesa (1789) e as Sublevações Operárias (1848), que irromperam manifestando suas diferenças e contradições. São Revoluções que alteraram a maneira de explorar os recursos naturais e a produção de bens: a Revolução Industrial alterou a transformação no sistema e controle de poder; e a Revolução Francesa foi delineando o mundo burguês na primeira metade do século XIX, na Europa Ocidental. É nesse processo que foram estruturados “os pré-requisitos gerais a partir dos quais se articulam as grandes matrizes culturais [empirismo/positivismo e do racionalismo/formalismo] do mundo contemporâneo, [...] [ou seja], a razão moderna” (NETTO, 1987, p. 10).

Netto (1987, p. 11) é incisivo ao caracterizar esse mundo inteiramente novo porque “ele engendra uma cultura inédita e uma arte peculiar; confere ao conhecimento científico da natureza funções outrora desconhecidas, relacionando-o estreitamente à produção”. Configura-se, portanto, uma economia/sociedade em que a organização da produção tem por fundamento a reprodução/sociabilidade do capital e cuja estratégia de expansão centraliza-se na civilização urbano-industrial e avança em direção à globalização.

A geração do mundo burguês durou séculos, foi dolorosa e violenta e “se caracterizou pela destruição brutal de antigos modos de vida, pela substituição de modelos anteriores de controle social, pela supressão a ferro e fogo das formas de organização societárias precedentes” (NETTO, 1987, p. 11).

Marx e Engels (1999, p.12) expressam esse incrível avanço na existência humana com a célebre frase: “tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas, tais foram as Revoluções dessa época.

É nesse processo que, de acordo com Netto (1987, p. 11), se colocam “possibilidades antes inimagináveis para a exploração da natureza e a elevação das condições da vida dos homens”; mas toda essa revolução é uma ilusão de avanço/progresso para os trabalhadores, pois o capitalismo tem seu lado perverso/contraditório, que traz no bojo a miséria relativa como elevado preço social. Esse novo modo de vida, urbano-industrial, gerou novos parâmetros e outras formas de pensamento/conhecimento, justamente as matrizes culturais do empirismo/positivismo e do racionalismo/formalismo, ambas expressões do idealismo. Elas assumem centralidade, pois se constituem essência do mundo burguês: de um lado, a defesa/sustentáculo da continuidade no poder pela burguesia, representante do capital, e de outro a oposição à classe trabalhadora, representante do trabalho, e à libertação da exploração. O que fica posto é a luta, o confronto de classes.

Assim, na primeira metade do século XIX presenciamos, de um lado, o enfrentamento dos trabalhadores com as insurreições proletárias de 1848 e, por outro, a sua repressão pela burguesia associada à nobreza que ela já havia derrubado. Para Netto (1987), as “ilusões heróicas” da Revolução Francesa foram liquidadas quando puseram a nu o caráter opressor da organização social capitalista. Em face da exploração capitalista de uma jornada média diária de trabalho de dezesseis horas, os trabalhadores, na defensiva, foram gestando um projeto político de classe, a Revolução Socialista.

O ano de 1848 é um divisor de águas. Desde então, ficou expressa a fratura social em dois campos opostos: o que se vincula à burguesia e o que se opõe a ela, neste caso, os trabalhadores. Foi o advento crucial do encontro contraditório do capital com o universo do trabalho, e Marx tinha dadas as condições sobre as quais pôde construir a sua obra de crítica ao capitalismo.

Na sociedade burguesa as relações sociais – ao contrário das sociedades antecedentes – têm características que possibilitam aos homens apreender as próprias atuações e desempenhos, pois é concebido, desde o iluminismo/antropocentrismo, que o homem, ser racional, é o centro das possibilidades.  É na sociedade burguesa que os homens podem compreender-se como sujeitos da sua própria história; “o homem pode passar a ter consciência humana como um ser que, condicionado pela natureza é diferente dela” (NETTO, 1987, p. 17).

Netto (1987) alerta, entretanto, que essa é apenas uma das possibilidades, pois ao se constituir na e pela exploração, essa sociedade (como as anteriores) funciona por meio da opressão da maioria pela minoria que, em sua dinâmica, para se legitimar, inventa e institui mecanismos que ocultam a exploração e a divisão da sociedade em classes sociais. Quer dizer, ao mesmo tempo existe a oportunidade dos homens compreenderem-se como sujeitos históricos, mas, por outro lado, criam-se mecanismos que impedem essa compreensão. Tais mecanismos são a alienação e a ideologia, realidades que serão tratadas mais à frente. Quando eles se tornam insuficientes, a burguesia usa da força, como a polícia e o exército.

Era necessária, portanto, a construção de uma teoria social que interpretasse o caráter e a dinâmica do capital, ou seja, a sociabilidade do capital, para suprimi-lo. Nesse sentido, Marx foi o pensador que inaugurou uma teoria social radicalmente nova de análise da sociedade burguesa: a dialética materialista fundamentada no método histórico dialético, que se constituiu em uma das matrizes culturais do conhecimento no mundo contemporâneo.

Ao contrário do que garantem muitos estudiosos, o século XIX não está “ultrapassado”. Concordamos com Netto (1987) quando ele afirma que na atualidade as principais matrizes do conhecimento nele emergentes estão vivas e influentes como jamais estiveram, pois num polo encontram-se os representantes dos interesses da burguesia, com as matrizes estabelecidas pelo positivismo e pelo racionalismo, e no outro a matriz elaborada por Marx: o materialismo histórico dialético.

2. Algumas questões

As questões postas são: como Marx busca conhecer a expansão da sociabilidade do capital e qual a sua dinâmica constitutiva do ser social?

Marx toma a sociedade burguesa como produto de um processo histórico secular. A “Ideologia Alemã” (MARX e ENGELS, 1977) tem por pressuposto que os homens têm de viver em condição para fazer história. O homem que esses autores buscam conhecer é real, uma vez que para poder viver tem de beber, comer, abrigar-se, vestir-se. Portanto, viver significa estabelecer relações com outros homens e com a natureza por meio do trabalho em determinadas condições, que não são escolhidas por eles, para produção da subsistência material, que é econômica, política, social e cultural. Pode-se conservar essas relações ou lutar para transformá-las. Pressupõe-se a produção das condições materiais de existência humana como histórica porque difere no tempo e de sociedade para sociedade.

A Teoria Marxiana “toma a sociedade burguesa como uma totalidade (um todo), não como um conjunto de partes que se integram funcionalmente (um tudo)” (NETTO, 1987, p. 30), pois a analisa como um sistema de relações articuladas, contraditórias e dinâmicas. É uma teoria que espera “apanhar o movimento constitutivo do social, movimento que se expressa sob formas econômicas, políticas e culturais, mas que extravasa todas elas” (NETTO, 1987, p. 30). 

Nessa ótica, é o mais complexo que auxilia a explicação do mais simples e o presente é que ilumina o passado. É nesse sentido que o homem, como ser prático e social, o é pelo trabalho e por suas objetivações. Assim, é na existência efetiva, nas contradições de seu movimento real, que se define o que o homem é.  “Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem” (MARX e ENGELS,1977, p 28). Nesta perspectiva, para a compreensão do que é o homem, parte-se dos fatos reais, da produção e das relações sociais que as condições de existência determinam.

O ser social com o qual nos deparamos é um ser que se produz pelo trabalho. O conteúdo da essência humana, reforçamos, reside no trabalho. É por meio dele que os homens produzem a si mesmos. Logo, a essência humana (trabalho) é o princípio educativo por excelência.

3. A questão do método

Marx expôs alguns princípios fundamentais do método materialista dialético e, para a formulação do materialismo histórico, partiu do ser social, cujo primeiro ato é a produção material da própria vida (beber, comer, abrigar-se etc.), das condições materiais necessárias à sobrevivência, o que evidencia o papel de relevo da economia política. Para tanto, privilegiou a produção e a reprodução da vida humana tornando o trabalho a categoria central do materialismo histórico. O “método” a partir dos postulados marxianos fundamenta-se nas dimensões do social e assim nos remete a análise histórica: a do movimento do capital que, por sua vez, nos remete à análise do movimento de classes. Marx realiza uma análise crítica radical da sociedade capitalista mostrando que nela se estabelecem, no campo da produção, relações sociais de exploração e dominação.

Em os “Manuscritos Econômicos-Filosóficos”, Marx (1987) alega que o método, como caminho, nos possibilita a apreensão do real, que são as relações sociais. Elas são econômicas, políticas, culturais e ideológicas e podem ser preservadas ou transformadas, pelo fato de serem sociais e produzidas pelos homens. Assim, o método possibilita desvelar o real buscando no movimento temporal histórico a constituição dos seres e de suas significações, ainda que as condições sejam determinadas, ou seja, não escolhidas pelos homens. Eles necessariamente entram em relação com outros homens e com a natureza para produzir a sua subsistência.

O pesquisador/cientista constrói o conhecimento partindo dos fatos mais simples, do aparente/superficial, que segundo Netto (2011, p. 8)

Numa palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto [...] isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimento analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou.

Reafirmamos que o nosso real é a sociedade capitalista, em que o fato mais visível, mais imediato, o que se expõe à observação e como dado empírico evidente é a mercadoria. A sociedade capitalista é produtora de mercadorias por excelência.

 É deste fato empírico, a mercadoria, que Marx procurou apreender as contradições, a constituição conflitual do real, evoluindo para um sistema de relações e mediações que não estão apresentadas à observação, pois são ainda aparências. A mercadoria é considerada a forma mais simples e a mais abstrata do modo de produção capitalista. Vemos uma infinidade de mercadorias que são produzidas, acumuladas, distribuídas e consumidas. Entretanto, existem mais mercadorias do que podíamos imaginar, pois o trabalhador que aparece em um primeiro momento como ser humano, é produtor de sua subsistência, é transformado em mais uma mercadoria, vitimado pela desapropriação histórica realizada pela burguesia, que se apropriou das terras, dos instrumentos e dos meios de produção. O homem se viu obrigado a vender o que lhe restou: sua força de trabalho. Há que se observar e constatar que a força de trabalho é a única mercadoria que produz as demais, que produz valor, mas a burguesia a apresenta no mercado como se fosse uma mercadoria qualquer.

O preço da mercadoria não aparece no momento imediato em que vai para o mercado. Seu valor é produzido pela quantidade de trabalho necessário para fabricar o produto desde o primeiro momento. Tomemos como exemplo uma cadeira de madeira: seu preço é determinado considerando desde o trabalho de extração da madeira, passando por beneficiá-la e, por fim, transformá-la. Esses processos são tempos de trabalho, entram como custo de produção; no entanto, a cada período o trabalhador recebe como salário um valor - cuja referência se dá apenas como parte do trabalho produzido - que seja suficiente para se alimentar, se alojar, se vestir, se transportar, dar sustentação à família, ou seja, para que ele se reproduza e retorne à produção de mercadorias a cada dia. Assim, a função do salário é recriar o trabalhador. Por esta razão, o dinheiro que lhe é repassado pela venda do seu trabalho não é capital, e sim salário.

O salário não é determinado pelo capitalista, mas “pela taxa de lucro do capital e essa taxa de lucro é determinada socialmente” (MARTINS, 1980, p.200). Um capitalista não pode aumentar a seu bel-prazer o salário de seus trabalhadores, pois sua taxa de lucro cairia em relação aos outros capitalistas e viriam os prejuízos, obrigando-o a deixar de ser um capitalista.

Dessa forma, “o capital não está a serviço do capitalista. Muito ao contrário, o capitalista é que está a serviço do capital” (MARTINS, 1980, p.201). Apesar de trabalhadores e capitalistas serem dominados pelo capital, os primeiros sujeitos dessa relação perdem e os segundos ganham. Essa troca, apesar de aparentemente ser entre iguais, na verdade produz resultados muito diferentes. Os trabalhadores recebem salários (que lhes permitem apenas a reposição dos meios de vida necessários para sua reprodução como trabalhadores) e os capitalistas se apropriam do lucro, aumentam o seu capital apropriando-se da mais-valia, isto é, da parte do trabalho não pago aos trabalhadores.

Uma vez efetuada uma aparente troca de equivalentes, o trabalhador demora a descobrir que é o seu trabalho que aumenta o lucro:

(...) é nesse sentido que emerge o outro lado da alienação da força de trabalho do trabalhador no sistema capitalista: ele não vê como é, mas como parece ser, como igual e livre; não como se o capital dependesse dele, do seu trabalho, mas como se ele dependesse do capital. Por isso, além de alienar, de entregar o seu trabalho, ele também se aliena, se entrega (MARTINS, 1980, p.203).

A partir de determinado momento do processo histórico, com a apropriação privada do produto do trabalho por outro indivíduo que não é o trabalhador produtor, o trabalho como elemento de humanização é degradado, é estranhado, ou seja,

(...) o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser alheio, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se fez coisa; é a objetivação do trabalho. A realização efetiva do trabalho é a sua objetivação. No estado econômico-político esta realização efetiva do trabalho aparece como “desefetivação” do trabalhador, a objetivação como perda e servidão do objeto, a apropriação como alienação, como exteriorização (MARX, 2004, p.3).    

Para encobrir a exploração, que se consolida a partir da divisão do trabalho, temos a ideologia, que por sua vez é um dos instrumentos de dominação de classe e, como tal, tem por objetivo em sua origem disfarçar/ocultar a divisão da sociedade em classes contraditórias e em luta. Chauí (1981) afirma que, se a dominação e a exploração de uma classe fossem perceptíveis como violência, abuso, desumanidade ou selvageria, seriam avaliadas como poderes injustos e ilegítimos e os trabalhadores se sentiriam de fato explorados, o que poderia levá-los a rejeitar o sistema capitalista, revoltando-se. Por esse motivo, o papel particular da ideologia, como instrumento de luta de classes, é impedir que os trabalhadores descubram que a dominação e a exploração são realidades concretas. “Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu da luta de classes para servir a uma classe, a dominante”(CHAUÍ, 1981, p.103).

O que a ideologia quer ocultar é que a força de trabalho é a produtora de toda e qualquer mercadoria; nesse sentido, o capital oriundo da força de trabalho objetivada na mercadoria é trabalho humano não pago, trabalho esse acumulado de anônimos trabalhadores. Trata-se de produto social contraditoriamente apropriado pelos capitalistas, ou seja, capital é trabalho não pago, é a mais-valia acumulada.

Após um trabalho de reflexão sobre o que é a mercadoria, indo além do imediato e da aparência – compreendendo suas contradições e antagonismos – podemos perceber a complexidade do resultado de interpretar e entender o que são relações sociais, relações de produção, ainda que a mercadoria apareça como um bem que se compra e se consuma em um primeiro olhar, na aparência. O dinheiro também é uma mercadoria que estabelece uma equivalência social geral para as demais, complicando ainda mais a compreensão imediata da sociedade capitalista.

A equivalência social geral estabelecida pelo dinheiro permite que as mercadorias passem a ter vida própria e comecem a se relacionar umas com as outras. Um carro novo vale um jeito de viver; uma calça de determinada marca vale uma vida de jovem de classe alta; um trabalhador da construção civil vale “X” dólares por hora trabalhada, enquanto um médico vale uma remuneração “N” vezes maior que a de um trabalhador braçal. São casos de “fetiche da mercadoria”, pois esta passa a ter poder e dominar com uma força estranha o querer e o sentido dos homens, em um consumismo enlouquecido. A aparência social se transforma na própria realidade social onde as mercadorias se humanizam, tornam-se gente, e os homens são transformados em “coisas”; é a reificação. Chauí (1981, p.58), interpretando Marx em como se sociabiliza o capital, afirma que

[...] as coisas produzidas e as relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter relações sociais. Produzir, distribuir, comercializar, acumular, consumir, investir, poupar, trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias, independentemente dos homens que as realizam. Os homens se tornam os suportes dessas operações, instrumentos delas.

Marx (1977), na “Ideologia Alemã”, afirma que a partir da divisão do trabalho em material e espiritual o resultado social é contraditório, desde a produção e a reprodução das condições de existência, ou seja, nas relações (com a natureza e com os outros homens) de cooperação e troca, da procriação e da sexualidade da família. Chauí (1981, p. 61) corrobora que elas são em cada tempo histórico “o conjunto das forças produtivas que determinam e são determinadas pela divisão social do trabalho”.  Essa autora acrescenta que:

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo por sua vez na desigual distribuição do produto trabalho. (...) A divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade (CHAUÍ, 1981, p.61).

Os resultados da divisão do trabalho expressam uma realidade contraditória, como afirma Marx e Engels (1977, p.45), em que “não são os mesmos indivíduos que produzem aqueles que usufruirão, pois trabalho, produção e consumo – [cabem] a indivíduos diferentes”.

A análise da sociedade capitalista realizada por Marx mostra as contradições do capitalismo como produção social que, no mesmo processo histórico, gesta o seu contrário, sua negação, ou seja, as condições para superá-lo, inaugurando a “história da humanidade”. Isso só será possível porque a sociedade burguesa é cortada por uma contradição insanável: a produção é social/coletiva, mas os resultados dessa mesma produção são apropriados privadamente pelos capitalistas. O antagonismo entre trabalho e capital leva essa sociedade a crises econômicas, sociais e políticas constantes que se manifestam em tensões e conflitos que se acumulam e se multiplicam em incontáveis insatisfações e inseguranças.

As incessantes tensões e conflitos, que geram contradições e insatisfações, vão possibilitando a negação dessa sociedade de exploração e a necessidade da construção de nova ordem social, que denominada por Marx e Engels (2016) à época de comunismo (denominação esta provisória por que utópica), um rico espaço em que a promessa da felicidade social seria possível com o florescimento da personalidade de todos e cada um dos homens, à base da “livre associação de livres produtores”. A exploração do homem pelo homem seria então convertida em mera lembrança.

4. Palavras finais

Os estudos de Marx acerca do mundo capitalista encerram uma crítica à filosofia clássica alemã, fundamentalmente a Hegel e a Feurbach (IANNI, 1996). Marx desenvolve sua reflexão partindo do pensamento de Hegel, que ele dissipa e reconstrói. Segundo Ianni (1996), essa reconstrução crítica se constitui dessa forma porque ora incorpora as contribuições de Hegel, ora as rejeita. Assim também ocorre nas análises que faz das obras de Ricardo, Adam Smith e outros autores clássicos.

Nas análises de Marx, a realidade primeira é opaca, uma vez que não a podemos conhecer de forma imediata. A “realidade é complexa, contraditória, construída por nexos, relações, processos, estruturas que não se deixam conhecer pela observação empírica convencional” (IANNI, 1996, p.4). Assim, para conhecer seu objeto de estudo, o pesquisador necessita realizar uma reflexão ampliada sobre o real, conhecer e interpretar o seu objeto de estudo e os meandros que o envolvem.

A fim de construir o seu objeto o mais concreto possível, ou seja, apreender as suas múltiplas determinações, o pesquisador lança mão dos conhecimentos disponíveis em cada época histórica para construir/interpretar os nexos. Esse caminho do empírico à construção do objeto se faz lançando mão da fundamentação teórica, que aplicada ao objeto concreto em seu contexto, permite a construção de um novo conhecimento. Finalmente, o movimento de volta: o objeto é enriquecido pelo conhecimento socialmente produzido, acrescido do novo conhecimento. Esse procedimento representa uma “síntese de múltiplas determinações”, ou seja, que leva, portanto, o novo. Alcançar o conhecimento científico, explicar qualquer objeto por meio da ciência requer do pesquisador a retomada dos conceitos e teorias socialmente construídos.  É por meio da teoria, pelo pensamento, que as relações entre sujeito e objeto podem ser estabelecidas.

Alinhavamos neste texto os pressupostos da Teoria Social de Marx, que tem como objeto de estudo a sociedade burguesa; e, como objetivo, a superação da alienação do trabalho. Retomando o que foi exposto, o homem se constitui pelas relações que estabelece com a natureza e com os outros homens, o que significa dizer pelas relações sociais. É, pelo trabalho e pelo modo como o homem trabalha, que ele se objetiva e se aliena. Não se pode pretender a compreensão desta realidade apartando-se do processo histórico; nem a sua superação, sem o seu desvelamento.

Referências bibliográficas

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MARX, K. ; ENGELS, F.(1977) A ideologia alemã. São Paulo: Grijalbo.

MARX, K. ; ENGELS, F.(1999) O Manifesto Comunista. Tradução de Nélson Jahr Garcia. Edição eletrônica Ridendo Castigat Mores. Disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2016.

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NETTO, J. P. Introdução ao método da teoria social .(2011). UFRJ: Serviço Social, impressão eletrônica. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/60464122/Introducao-ao-metodo-da-teoria-social-Jose-Paulo-Netto> .Acesso em: 10 abr. 2012.

OECD.  Brasil - Country Note. Education at a Glance 2015: OECD Indicators. Disponível em: <https://www.oecd.org/brazil/Education-at-a-glance-2015-Brazil-in-Portuguese.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2016.


1. Doutora em Educação pela PUC-SP e Professora do PPGE da PUC Goiás. Email:  sperancacarneiro@outlook.com
2. Doutora em Educação pela PUC GO e Professora do PPGE da PUC Goiás. Email:  cristinadm@yahoo.com.br
3. Doutora em Educação pela UNESP e Professora do PPGE da PUC Goiás. Email:  luciarincon@gmail.com

4. A divisão em percentis de renda é utilizada pelo IBGE na Síntese de Indicadores Sociais, sendo que o 1º quinto refere-se aos mais pobres e o 5º quinto aos mais ricos. Em 2014, dos que tiveram acesso ao ensino superior público, 79,7% pertenciam ao 3º, 4º e 5º quintos e 20,3% pertenciam ao 1º e 2º quintos.


Revista Espacios. ISSN 0798 1015
Vol. 37 (Nº 34) Año 2016

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