Espacios. Vol. 33 (1) 2012. Pág. 37


Tecnologia, Cultura e Desenvolvimento em Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro nas décadas de 1950-60

Technology, Culture and Development in Álvaro Vieira Pinto and Darcy Ribeiro in the 1950s and 1960s

Tecnología, cultura y desenvolvimiento en Álvaro Vieira Pinto y Darcy Ribeiro en las décadas de 1950-1960

Gilson Leandro Queluz y Luiz Ernesto Merkle


“Do Tudo quanto está por fazer no mundo que é o seu”: Álvaro Vieira Pinto, Teoria do Desenvolvimento, Tecnologia e Amanualidade

Álvaro Vieira Pinto foi médico, matemático, físico, professor de Filosofia na Universidade Nacional e diretor executivo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). No seu livro Ideologia e Desenvolvimento Nacional(IDN), publicado em 1956, Vieira Pinto, defenderia a necessidade de elaboração de um novo instrumento conceitual que permitisse ao Brasil desenvolver uma ideologia do desenvolvimento que superasse a visão finita a que historicamente fora limitado, tendo por princípio, a partir de então, do ponto de vista do infinito, ultrapassar limites em direção a um novo horizonte de entendimento de si mesmo. Em outras palavras, se fazia necessário superar a consciência alienada, própria de um país colonizado, incapaz de possuir consciência autêntica, pois “ser objeto do pensamento de outrem, é comportar-se como outrem” (Pinto, IDN, 1956, p. 25).

Consequentemente, é no momento em que as massas gradualmente passam a tomar-se como sujeitos, com a maior participação dos trabalhadores e o “amadurecimento das lideranças sindicais” (Roux, 1990, p. 62) que seria possível a passagem da consciência alienada  à consciência autêntica. Este momento é diagnosticado por Vieira Pinto, nas décadas de 1950 e 1960, coerentemente com um novo nível de desenvolvimento material e demográfico alcançado, que implicaria em um novo grau de “claridade”, para a consciência brasileira. Roux(1990, p. 67) afirma que o trabalho de Vieira Pinto é marcado por um “nacional-iluminismo”, que consistiria na “regeneração da Nação, através de um projeto consciente e de tendência racional”. Neste quadro se fazia imprescendível a formulação de uma ideologia do desenvolvimento nacional, pois sem ela “não há [haveria] desenvolvimento nacional “ (Pinto, IDN,1956, p. 27). Em Vieira Pinto, alguns elementos que deveriam ser levados em consideração seriam justamente a comprensão do desenvolvimento como um processo histórico, a percepção de que o desenvolvimento é um fenômeno de massas e de que este é função direta da consciência destas mesmas massas (Pinto, IDN, 1956, p. 30). Estando encadeada, a ideologia do desenvolvimento deveria “proceder da consciência das massas”, porém, com a participação de intelectuais que auxiliassem o pensar em um projeto de desenvolvimento “consubstancialmente com as massas” (Pinto, IDN, 1956, p. 33)

Vieira Pinto deduz que “só estarão credenciados para promover o desenvolvimento nacional aqueles que forem escolhidos pelas massas”, através do voto popular (Pinto, IDN, 1956, p. 39) e para que este processo de transmutação do “homem em situação” fosse acelerado, seria importante o papel da educação (Pinto, IDN, 1956, p. 41). Vieira Pinto, posiciona-se, assim, dentro de uma tendência democrática do nacional desenvolvimentismo. Ou seja, o desenvolvimento deveria ser um projeto consciente, participativo, democrático, e vindo das pessoas comuns, o que não deixa de ser, inclusive, uma visão deveras apropriada para se pensar hoje inclusão tecnológica, acesso e transparência, governança eletrônica e outras tendências mediadas pelas tecnologias.

No livro Consciência e Realidade Nacional: a consciência ingênua (CRN), de 1960, Álvaro Vieira Pinto retoma a tese da necessidade de construção de uma teoria do desenvolvimento nacional. Para ele, o “processo do desenvolvimento nacional é função da consciência que a nação tem de si mesma” (Pinto, CRN, 1960, p.30). Sendo o desenvolvimento definido comoum projeto total da comunidade, é um cometimento deliberado do grupo que decide mudar as condições de existência em que se encontra e ascender a forma mais alta” (Pinto, CRN, 1960, p. 32).

Neste sentido, a ênfase acerca da ascensão de uma nova consciência nacional se desloca terminologicamente da necessidade de superação da consciência ingênua, antes denominada apenas de inautêntica, para uma nova consciência crítica, antes denominada apenas de autêntica. A mudança conceitual, indica um aprofundamento teórico. Podemos dizer que Álvaro Vieira Pinto, anuncia novas possibilidades de síntese entre a filosofia da existência e um marxismo marcado por um certo hegelianismo de esquerda, exigindo um comprometimento de novo quilate de filosófo, também de novo tipo, o filósofo do trabalho:

O filósofo do país periférico não goza da disponibilidade de interpretar o mundo segundo lhe aprouver; nem tem sentido em relação a ele dizer-se que é sujeito à angústia de uma liberdade que não sabe a que se aplicar. Não sofre a vertigem diante do destino abscôndito, o sentimento de culpa da própria finitude, a náusea em face do nada, simplesmente porque para ele não há o Nada, há o Tudo. Existencialmente, é um homem em face do Tudo. Do Tudo quanto está por fazer no mundo que é o seu. A filosofia da existência, precisamente porque foi sempre produto cultural do centro dominante, tem-se ocupado até agora, entre outros temas, em especular sobre o Nada, mas, a filosofia da existência, pensada a partir da situação do filósofo do mundo periférico, revela que, do lado de cá, o homem está em presença do Tudo quanto precisa fazer para realizar-se existencialmente; ressalta mais claramente, portanto, como essência da situação humana o “a fazer” (Pinto, CRN, 1960, p. 65, grifos nossos).

Este filósofo deve então, de maneira sistemática e ousada, compreender as noções de trabalho e de prática social em uma nação subdesenvolvida. Apesar da pertinência da crítica de Lebrun, de que Vieira Pinto “parece cobrir com o mesmo desdém o pedantismo e o saber, quando este não se vincula a ideologia, pois expressamente condena todo saber teórico que não oferece utilidade imediata para o desenvolvimento da consciência nacional” (Lebrun apud: Roux, 1990, p. 140), alertando que isto poderia conduzir a um pragmatismo cultural, estava dado o desafio instigante e criativo da necessidade de se ter em mente que a consciência necessariamente brota dos aspectos materiais, sociais e físicos, e que a filosofia tem um compromisso político e moral de lutar contra toda situação de marginalização social. A filosofia da realidade deve levar em conta que o“processo do desenvolvimento nacional é função da consciência que a nação tem de si mesma”(Pinto, CRN, 1960, p. 30). Mas vale ressaltar que a consciência para Álvaro Vieira Pinto é determinada pela prática social primordialmente mediante o trabalho” (Pinto, CNR, 1960, p. 60). Coerentemente, ele retoma a tradição marxista do trabalho como fator constitutivo do ser humano, dizendo que

o trabalho não é apenas atividade exercida exteriormente pelo homem, mas fator constitutivo da sua natureza, no sentido de que é por intermédio dele que se realiza a humanização progressiva do homem, e que cada um constrói a sua consciência da realidade, […] ao falar do trabalho, estamos significando a prática social em sentido amplo, entendendo como tal tanto a ação modificadora direta sobre a natureza material [...] quanto as ações transfiguradoras que alguns homens exercem no sistema das relações sociais, pela produção de idéias, pela atuação administrativa, pelos cuidados com a segurança coletiva, as quais, sem serem propriamente produtoras de objetos, são contudo formas de operação sobre a realidade, no plano social (Pinto, CNR, p. 60 e 62)

Na discussão acerca do conceito de trabalho, aparece como central a transmutação do conceito de amanualidade, realizada por Vieira Pinto. Ele retoma o conceito advindo da filosofia da existência,  afirmando que:

Viram os teóricos daquela corrente que o mundo se apresenta ao existente humano como espaço de ações possíveis mediante objetos dispostos ao seu redor, a serem tomados como utensílios, e que , portanto, a determinação mais imediata dos entes é a de se darem como algo que “está à mão”, caráter esse que foi chamado de “amanualidade”. Com efeito, a objetividade se faz acessível ao homem mediante a amanualidade com que se apresentam a nós os entes circunstantes preexistentes à ação (Pinto, CRN, 1960, p. 69).

Porém, Vieira Pinto considera que esta conceituação, apesar de importante é insuficiente, pois não leva em consideração o fato de que os objetos que nos cercam, são objetos fabricados e, portanto, são feitos pelo trabalho, possuem uma historicidade e fazem parte de uma determinada cultura. Esta relação entre técnica, trabalho e cultura é uma tematização central no conceito de amanualidade, como elaborado por Vieira Pinto,  pois,

o aparecimento de todo novo objeto, pela revelação da sua presença “à mão”, supõe um patrimônio de percepções em aumento constante, que é a própria cultura como fato histórico. Cada indivíduo encontra o mundo povoado pelos objetos que a época na qual nasceu pode produzir, na fase em que se acha o processo econômico e cultural da sua comunidade. A revelação do mundo, pelo amanual das coisas, se faz, portanto, trazendo sempre o caráter histórico da manufatura e se refere às forças de produção, às relações de produção e ao grau de avanço intelectual existentes (Pinto, CRN, 1960, 71).

A relação entre história, trabalho, cultura material, nos conduz novamente a tecnologia. Freitas, que já elabora e demonstra a importância da obra de Vieira Pinto ao estudo histórico da tecnologia, expressa que:

Na forma como Vieira Pinto se apropriou e recriou o conceito de amanualidade, há um dado que merece nossa atenção e que diz respeito à entrada em cena de uma acepção de história para pensar socialmente a tecnologia (2006, p. 93).

Portanto, se a sociedade é fruto de um processo histórico e cultural decorrente do mundo do trabalho, o mundo que se revela por meio da amanualidade em um país subdesenvolvido reveste-se de um caráter distinto da dos países desenvolvidos. O conhecimento do mundo dele derivado é distinto, e o grau de consciência social existente dialoga diretamente com a cultura material. Vieira Pinto demonstra-nos que a aceitação do caráter histórico-cultural da amanualidade, implica na percepção das possibilidades de alterações constantes do conhecimento do mundo e da consciência social, conforme o grau de desenvolvimento material alcançado por determinada sociedade. É neste sentido que se faz necessária uma filosofia da realidade nacional, que atualize e tematize teoricamente os diferentes graus de desenvolvimento e consciência nela alcançados.

Para Vieira Pinto, a importância da alteração qualitativa do mundo do trabalho, implícita no processo de desenvolvimento, requer uma nova filosofia da técnica, pois para ele o cerne da técnica é a “acumulação qualitativa do trabalho” (Pinto, CRN, 1960, p. 75). Esta acumulação seria uma “sedimentação histórica de maneiras de trabalho distintas qualitativamente e superpostas como camadas, revelando a natureza de 'processo' do desenvolvimento técnico” (Pinto, CRN, 1960, p. 77). Vieira Pinto enfatiza que o significado grego de técnica como arte de produzir, permite vê-la como ato de criação e não apenas de reprodução.

Este ato criativo é necessariamente um “querer o mundo”, ato histórico de transformação, esforço consciente de uma comunidade para alteração qualitativa do mundo material. É neste sentido que Vieira Pinto, explicita a sua tese de que,“o processo histórico do desenvolvimento nacional consiste no desenvolvimento de processos técnicos de produção” (Pinto, CRN, 1960, p. 79). A técnica precisa ser compreendida em um “contexto social, a um dado regime de produção e a determinado momento histórico”, pois “só em função do estado global de uma sociedade é que certo conjunto de atos e procedimentos aparece como técnico” (Pinto, CRN, 1960, p. 78). Esta historicidade estaria presente, por exemplo, na crescente aceitação como cultura dos novos modos de saber presentes nos conhecimentos técnicos, por uma sociedade brasileira, historicamente refratária aos trabalhos manuais.

Visão que é condizente com a própria conceituação de cultura de Vieira Pinto, ou seja, “cultura não é a acumulação e armazenamento do saber, de qualquer espécie, mas a assimilação dele segundo uma perspectiva que é consciente dos fundamentos e exigências a partir dos quais incorporou os produtos do conhecimento de uma época anterior e o que pensa como saber atual” (Pinto, CRN, p. 118). Conceito refinado em outro momento de sua obra, onde afirma que cultura “é estilo de existência, que envolve toda produção material e intelectual do povo, e que, portanto, exprime o modo de ser dele, quando determinado pela sua autoconsciência (apud Roux, 1990, p.195). Desta forma, a construção de uma nova consciência nacional seria concomitante a uma transformação qualitativa na cultura e nos processos técnicos, para as quais colaboraria uma nova educação que preparasse o educando para um “novo modo de pensar e de sentir a existência, em face das condições nacionais em que se defronta”, baseado na noção de que o saber deve estar voltado para o esforço de transformação coletiva da realidade (Pinto, CRN, 1960, p. 121).

Desta forma, se Vieira Pinto cede por um lado ao “fascínio cepalino”, algo mecanicista, de um grande encantamento com a tecnologia e com o poder evolutivo contido na sua propagação (Freitas, p. 58), por outro opera uma transmutação neste encantamento ao propor a simultânea e igualitária importância de fatores interligados  - cultura e processos técnicos - na construção de uma nova consciência crítica nacional. Esta estratégia permite a Vieira Pinto exaltar o papel da cultura popular no processo de transformação social, e exaltar também o locus original de sua constituição, ou seja, o mundo do trabalho. Segundo Freitas (1998, pp. 30-31), esta característica o levaria a ser reconhecido como “teórico do caráter emancipatório contido na cultura popular”. O destacado papel concedido à educação por sua vez, contribuiria para a elaboração dos elementos teóricos cruciais para seus futuros combates por uma educação não elitista, onde a teoria e a prática seriam integradas, do modo como ele as concebia.

Ainda nesta década de 1960, em Ciência e Existência(CE), livro escrito em 1967, em exílio no Chile e durante a ditadura militar no Brasil, Vieira Pinto (1985, CE), ao apresentar uma reflexão sobre o papel da pesquisa científica e dos trabalhadores científicos nos países subdesenvolvidos, reforçaria a sua visão sobre as relações entre ciência, tecnologia e cultura. Para ele a apropriação da ciência em novas bases, inclusive filosóficas, é “condição vital” para a libertação política, econômica e para a superação da cultura reflexa e imitativa, hegemônica nestes países. A ciência considerada como um campo da cultura, sendo esta compreendida como produto do processo produtivo, é simultaneamente bem de produção e bem de consumo. Um acervo cultural seria constituído, para ele, tanto de “instrumentos materiais de transformação da realidade”, quanto de idéias e criações artísticas e ideológicas, apropriadas diversamente por diferentes classes sociais.

Concluindo, ciência, técnica e cultura estariam, intrinsecamente interligadas nas sociedades. Neste arcabouço, pensar a ciência e a tecnologia como separados e passíveis de serem abstraídos da cultura e da história de uma sociedade, seja para fins de pesquisa, ou elaboração de políticas ou projetos educacionais para o desenvolvimento socioeconômico nos soa contraditório com os próprios anseios sedimentados em CTS.

Darcy Ribeiro: Tecnologia, Cultura e a Sociedade Futura

Darcy Ribeiro escreveu O Processo Civilizatório em exílio, em 1968, no Uruguai. Ex-reitor da Universidade de Brasilia, ex-ministro da educação do governo João Goulart, ex-chefe da casa civil e ex-responsável pela condução do processo político de implantação das reformas de base, ele deparava-se com a angústia advinda de um fracasso político, e ao mesmo tempo da esperança de construção de uma sociedade brasileira e latino-americana mais justa e fraterna. Para uma melhor compreensão da “causa da desigualdade de desenvolvimento dos povos americanos”, Darcy Ribeiro (2000, pág. II) elabora o projeto de uma  obra em cinco volumes, denominado Estudos de Antropologia da Civilização, do qual o Processo Civilizatório se constituiria no primeiro volume.

Nas palavras de Mércio Pereira Gomes, Darcy pretendia “interpretar o Brasil e para isso precisava contextualizá-lo na escala de evolução das sociedade humanas e no desenvolvimento do mundo colonial” (2000, p. 34). Pensador de grande autonomia e de capacidade criativa de elaboração teórica, Darcy Ribeiro move-se nesta obra em um campo marcado por tensionamentos. Desenvolve um certo “materialismo histórico-cultural” ao mesclar sem pudores as suas formações culturalista americana e marxista (Gomes, 2000, p. 32). Esta última corrente, especialmente em sua derivação da teoria evolucionista humana, como representada por Gordon Childe, Leslie White e Julian Steward (Gomes, 2000, p. 33).

Assim a sua proposição presente em O Processo Civilizatório, de apresentar as “sociedades avançadas e atrasadas não como etapas sucessivas da evolução humana, mas como pólos interativos de um mesmo sistema socioeconômico”, integra-se a um combate às posições eurocêntricas por meio de uma visão da evolução sociocultural da humanidade. Para desenvolver esta análise, deteve-se justamente na percepção das interações entre as transformações tecnológicas, nos modos de ordenação das relações humanas e na cultura, compreendida como “patrimônio simbólico dos modos padronizados de pensar e de saber que se manifestam” material e ideologicamente nas sociedades. Segundo Lobo e Vogas, as obras componentes de Estudos de Antropologia da Civilização, “constituem um trabalho com forte inspiração marxista, sobretudo pela eleição da “tecnologia” como critério para construção da sua tipologia de um esquema evolutivo” (2008, p. 55).

A construção deste esquema, a partir de uma original abordagem das relações entre tecnologia, sociedade e cultura, tinha diversos objetivos políticos, entre eles, adentrar ao debate sobre o desenvolvimentismo, desmoralizando “proposições desenvolvimentistas das teorias da modernização, que fazem supor uma progressão espontânea do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, através da industrialização substitutiva” (Ribeiro, 2000, p. XVIII). Ao combater as bases deste modelo linear de desenvolvimento, combate comum, como já vimos, à cepalinos e isebianos, Darcy Ribeiro procurava valorizar a “experiência vivida dos povos”, compreendendo a busca da verdade, na “vida e na história”, propondo-se a uma “observação direta ou da reconstituição histórica criteriosa de contextos sociais concretos e da comparação sistemática dos mesmos” (Ribeiro, 2000, p. XX). Esta atenção à experiência vivida, utilizando um termo de Williams (2005), explica a sua retomada do conceito marxista de formação sócio cultural como “modelo teórico de resposta cultural” às revoluções tecnológicas.

Para enfrentar as contradições inerentes aos processos civilizatórios e diríamos, à sua própria concepção teórica, Ribeiro elaborou ou redefiniu não só conceitos como revolução tecnológica, mas também atualização histórica e aceleração evolutiva, entre outros. Vejamos seus significados. Revolução tecnológica indicaria,

que a certas transformações prodigiosas no equipamento de ação humana sobre a natureza, ou de ação bélica, correspondem alterações qualitativas em todo o modo de ser das sociedades, que nos obrigam a tratá-las como categorias novas dentro do continuum da evolução sociocultural. Dentro dessa concepção, supomos que ao desencadeamento de cada revolução tecnológica, ou à propagação de seus efeitos sobre contextos socioculturais distintos, através dos processos civilizatórios, tende a corresponder a emergência de novas formações socioculturais (Ribeiro, 2000, p. 20).

Darcy identificaria, neste sentido oito revoluções tecnológicas, a Revolução do Regadio, a Revolução Metalúrgica, a Revolução Pastoril, a Revolução Mercantil, a Revolução Industrial e a Revolução Termonuclear, que por sua vez motivariam processos civilizatórios diversos, marcados por diferentes dinâmicas culturais de difusão e aculturação. Dentre estas dinâmicas, Darcy Ribeiro destaca os processos de aceleração evolutiva e atualização histórica. Aceleração evolutiva designaria “os processos de desenvolvimento de sociedades que renovam autonomamente seu sistema produtivo e reformam suas instituições sociais no sentido de transição de um a outro modelo de formação sociocultural, como povos que existem para si mesmos (Ribeiro, 2000, p. 27).

O conceito de atualização histórica, novamente retirado do estoque conceitual cepalino (Freitas, 1998), por sua vez indicaria:

os procedimentos pelos quais esses povos atrasados na história são engajados compulsoriamente em sistemas mais evoluídos tecnologicamente, com perda de sua autonomia ou mesmo com a sua destruição como entidade étnica (Ribeiro, 2000, p. 27).

A principal característica do processo de atualização histórica estaria no seu sentido de “'modernização reflexa', com perda de autonomia e com risco de desintegração étnica” (Ribeiro, 2000, p. 28). Se a compreensão da modernização reflexa já estava presente na concepção cepalina, a enfâse no risco de desintegração étnica-cultural, permitiria a Ribeiro uma maior sensibilidade a ação dos movimentos sociais.

Estes conceitos, que contém certa originalidade, somados aos de atraso ou regressão histórica e estagnação cultural, permitiriam uma nova visão acerca dos povos desenvolvidos e subdesenvolvidos. Na concepção de Darcy Ribeiro, estes diferentes lugares no mundo moderno seriam resultado de sua interação e complementaridade em “amplos sistemas de dominação tendentes a perpetuar suas posições relativas e suas relações simbióticas como polos de atraso e do progresso de uma mesma civilização”. Desta forma seriam desenvolvidos os povos que

se integram autonomamente na base de civilização industrial e são subdesenvolvidas as que nela foram engajadas por incorporação (atualização) histórica como ‘proletariados externos', destinados a preencher as condições de vida e de prosperidade dos povos desenvolvidos com os quais se relacionam (Ribeiro, 2000, p. 29).

Há, portanto, uma ênfase no caráter global do processo civilizatório. Gostaríamos de exemplificar este processo com dois exemplos, a revolução mercantil e a industrial, tendo em vista a importância para o autor do debate subjacente acerca do desenvolvimento. Para Darcy Ribeiro, a formação mercantil também nasce bipartida em dois complexos complementares:

Primeiro o complexo metropolitano das nações, as estrutura por aceleração evolutiva como centros de poder e de comércio ultramarino [...] Segundo o complexo colonial, implantado através de movimentos de atualização histórica, que gera as colônias mercantis de feitorias asiáticas de comércio e africanas de suprimento de mão-de-obra escrava e as colônias escravistas das áreas americanas de exploração de minas e de plantações comerciais operadas, tanto direta como indiretamente, através de outros agentes coloniais, como os portugueses e os espanhóis (Ribeiro, 2000, p. 122-123).

Esta mesma dialética entre aceleração evolutiva e atualização histórica estaria presente na revolução industrial, quando

o impacto da Revolução Industrial se imprime diferencialmente, conforme se exerça direta ou reflexivamente entre os povos. No primeiro caso, configura as sociedades modernas; no segundo o contexto de nações subdesenvolvidas. Ambos são produtos das mesmas forças renovadoras que, no primeiro caso, realizaram suas potencialidades pela aceleração evolutiva, e no outro caso, vendo-se limitadas externamente pela espoliação imperialista e, internamente, pela constrição oligárquica, configuram-se como um processo de atualização histórica incapaz de conduzir ao desenvolvimento autônomo (Ribeiro, 2000, p. 139).

Eis aqui um ponto crucial. Para Darcy Ribeiro, esta reflexão permite diagnosticar o subdesenvolvimento, não como fruto do atraso diante do progresso ou arcaísmo, mas sim, resultado do próprio processo contraditório da Revolução Industrial, que gera dois produtos, “os núcleos industriais como economias de alto padrão e tecnológico e a periferia neocolonial de nações, estruturadas menos para atender às suas próprias necessidades do que para prover aqueles núcleos de bens e serviços em condições subalternas” (Ribeiro, 2000, p. 139).

O subdesenvolvimento, portanto não seria uma “crise de crescimento”, mas um trauma provocado às sociedades latino-americanas por “processos de modernização reflexa e degradação cultural” (Ribeiro, 2000, p. 139-140), nações espoliadas com a aquiescência da sua classe dirigente. Para Darcy, as tensões entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas seriam as principais tensões da contemporaneidade.

O debate central sobre o subdesenvolvimento permite compreender a dimensão política do argumento de Darcy Ribeiro de forma plena. Se por um lado a visão de que a revolução tecnológica conduz a novas formações socioculturais está eivada de traços claros de determinismo tecnológico e de um certo etapismo evolucionista, criticáveis em sua linearidade e ocultamento da agência social, por outro serve como estratégia persuasiva acerca da necessidade premente de construir um novo discurso ideológico, capaz de imbuir as populações dos países subdesenvolvidos de um espírito de missão transformador das suas condições sociais. É neste sentido que ele exalta o socialismo revolucionário em sua capacidade de aceleração evolutiva, e em grau menor, o nacionalismo modernizador em sua “capacidade de mobilização popular para o esforço desenvolvimentista, o intervencionismo estatal e o planejamento econômico” (Ribeiro, 2000, p. 154), e em seu forte “reformismo antioligárquico”.

É neste sentido reformista do nacionalismo econômico que podemos entender, paradoxalmente, a utopia de uma civilização da humanidade que segundo ele surgiria graças à Revolução Termonuclear. Para Darcy Ribeiro, na nova formação sócio-cultural, haveria um esmaecimento na divisão de classes, oriunda da “implantação da tecnologia científica moderna de base termonuclear e eletrônica ” (Ribeiro, 2000, p. 161), do acúmulo e da difusão de inovações na forma de

aviões a retropulsão, baterias solares e, sobretudo de dispositivos ultra-rápidos fundados na tecnologia de transistores, que permitiram produzir o radar e os novos computadores, os reatores nucleares, a luz corrente, o radio telescópio, os projéteis espaciais, os sistemas automáticos de produção química, os meios modernos de telecomunicação em massa, os sistemas cibernéticos de coordenação de informações. [… que tendem a] proporcionar prodigiosas fontes de energia e uma abundância teoricamente ilimitada de bens e serviços” (Ribeiro, 2000, p. 162).

Esta promessa teórica já seria para Darcy responsável pelo desejo de antecipação histórica presente no socialismo revolucionário. Porém, esta observação reconduz-nos a questão da agência social. Para Darcy a série de dissociações trazidas pela promessa de abundância e igualdade contrapostas as resistências das elites dirigentes às mudanças da ordenação social, torna conflitivo o processo de transformação. Neste sentido, seria fundamental o papel dos “movimentos de emancipação política, econômica e cultural em que estão empenhadas as nações subdesenvolvidas” (Ribeiro, 2000, p. 172).

Para ele, caberá “aos povos atrasados na história uma função civilizadora dos povos mais evoluídos” (Ribeiro, 2000, p. 172). Esta afirmação, de cunho marcadamenente anticolonialista, permite a Ribeiro enfatizar que este é um processo marcado pela intencionalidade, seja na relocação da ciência, “como fator cultural”, como agente de “ação sobre a natureza, de reordenação das sociedades e de configuração das personalidades humanas” (Ribeiro, 2000, p. 165), seja na constituição de uma futura formação socialista de “um novo tipo”, marcada por uma “política intencional de base científica” (Ribeiro, 2000, p. 173).

As características desta nova civilização da humanidade seriam, além da igualdade e da abundância, a superação da diferença entre cidade e campo, a superação da distância entre trabalho braçal e intelectual, a transformação do patrimônio cultural da humanidade – por meio da educação – em patrimônio comum, o fim da ruptura entre o produtor e o produto de seu trabalho, o reflorescimento do desejo de beleza, a proscrição das guerras e a criação de um “sistema mundial de poder estruturado segundo princípios supranacionais que permitam dar representatividade às populações humanas segundo a sua magnitude” (Ribeiro, 2000, p. 176). Os grandes desafios desta nova configuração civilizacional passariam a ser segundo o autor, o esforço de mediar e controlar “seus poderes quase absolutos de programação da reprodução biológica do homem, de ordenação intencional da vida social, de condução do processo de conformação e regulamentação da personalidade humana e de intervenção sistemática nos corpos de valores que orientam a conduta pessoal” (Ribeiro, 2000, p. 176). Como antídoto a estas tendências despóticas, Darcy propõe o incentivo à criatividade e ao livre desenvolvimento humano.

Podemos concluir que Darcy Ribeiro propõe fortes relações entre transformações tecnológicas e formações socioculturais na articulação desta obra, onde procura novas dimensões persuasivas em um contexto de desenvolvimentismo autoritário brasileiro, em que a motivação tecnocrática das políticas científico-tecnológicas adotadas necessitava ser combatida pelo apelo à intencionalidade transformadora dos movimentos sociais, à valorização das estruturas socioculturais das nações subdesenvolvidas e à proposição de um novo papel missionário utópico aos intelectuais brasileiros.

Considerações Finais

Como já expressamos anteriormente, parte da motivação deste nosso trabalho reside em nosso interesse em contribuir para um entendimento amplo de tecnologia, muito próximo das pessoas comuns, de seus afazeres e fazeres quotidianos, mas não necessariamente distantes do que acreditamos deveriam estar constituídas a ações educacionais, científicas e tecnológicas.

Há vários liames entre alguns dos autores de nosso interesse mencionados ao longo o texto, como Raymond Williams, Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire, e Darcy Ribeiro. Aqueles e aquelas que nos interessam ou podem vir a nos interessar, são pessoas que partem ou fomentam uma compreensão de tecnologia como processo histórico e cultural, situada socialmente e densamente permeada de quotidiano. Não por coincidência todos os aqui trazidos tiveram procupações com educação, trabalho e comunicação, e se engajaram de diferentes modos em ações e movimentos específicos junto às sociedades onde residiram ou transitaram.

As obras destes dois autores, Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, que começamos a explorar neste trabalho, nos dão subsídios para refletir sobre a tecnologia em sua relação com a cultura de modo diferenciado, mas muito pertinente às demandas e pressões contemporâneas

Como demontramos de maneira sucinta, tanto Vieira Pinto como Darcy Ribeiro tiveram seu pensamento crivado pelo contexto sócio cultural de sua época. Os anseios desenvolvimentistas, a ascensão dos movimentos sociais, a proposição de novos horizontes de pensamento pela CEPAL e pelo ISEB, o discurso anticolonialista e seu desejo de desalienação cultural, as práticas políticas institucionais, foram fatores decisivos na constituição do seu pensamento. Porém, desta síntese, retiraram elementos para uma original abordagem das relações entre tecnologia, cultura e desenvolvimento, das quais conceitos como amanualidade, em Vieira Pinto, ou a retomada radical das idéias de atualização histórica e aceleração evolutiva por Darcy Ribeiro, são exemplares.

Se uma re-apreciação de um ou de outro ainda é recente pela comunidade de CTS, mas exemplar de pensamentos sobre ciência, tecnologia e sociedade em apenas um país da América Latina, muitos outros autores e autoras ainda devem permanecer ao largo, longe das enseadas abrigadas de estudos consolidados. Nos damos ao luxo de concluir no compasso destes dois autores, acreditando que isto é algo que os estudos sociais em ciência e tecnologia podem modificar.

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Vol. 33 (1) 2012
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